Sunday, June 03, 2007

NEUTRALIDADE, OMISSÃO E CUMPLICIDADE

Christina Fontenelle
04/06/2007
E-MAIL:
Chrisfontell@gmail.com
BLOG/opinião: http://infomix2.blogspot.com/

Alegando respeito à soberania, o Palácio do Planalto decidiu não se manifestar oficialmente sobre o fechamento da Rádio Caracas de Televisão (RCTV). Em Londres, o presidente Lula disse, nesta sexta-feira, que ele tem que cuidar do Brasil, o presidente Hugo Chavez da Venezuela e o presidente Bush dos Estados Unidos. Simples assim - mesmo correndo o risco de parecer estar agindo como quando “quem cala consente”.

Hugo Chavez, é claro, elogiou o posicionamento do presidente brasileiro, mas criticou o do nosso Senado, em resposta ao requerimento aprovado naquela casa que pedia para que o presidente venezuelano devolvesse a concessão de rádio e TV à RCTV. O texto foi do senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) e teve aprovação de alguns senadores do PT. Chavez disse que isso se deu porque, “no Congresso do Brasil, lamentavelmente, dominam os partidos de direita” e que “o Congresso brasileiro age como um papagaio, reproduzindo o que diz o Congresso dos Estados Unidos”. Complementando, Chavez disse ainda que seria mais fácil a Coroa Portuguesa se reinstalar no comando do Brasil do que ele voltar atrás na decisão que tomou de não renovar a concessão da RCTV. As declarações foram feitas em cadeia nacional venezuelana de televisão, durante assinatura de acordos com uma delegação do Vietnã que estava na Venezuela. Chavez também fez críticas aos Senados chileno e americano e ao Parlamento Europeu por resoluções contrárias a não renovação da tal concessão.

Hugo Chavez é uma pessoa bem informada. Por isso, presume-se que tenha proferido tamanhas inverdades deliberadamente. Primeiro porque o presidente venezuelano deve estar exausto (pois cansado seria pouco) de saber que no Brasil não há no Congresso praticamente nenhum representante de direita, quiçá de partidos de direita. Ideologicamente falando, a representatividade de direita em nosso país quase que inexiste, e, quando existe, não tem nenhum espaço na mídia e muito menos nas grandes decisões do Congresso. Com certeza, e isso não é de se estranhar, Chavez chama de “direita” a tudo e a todos que com ele não concordem.

Em segundo lugar, o nosso Congresso está bem longe de ser uma imitação da casa republicana norte-americana – não só no que professa, mas também no que faz. Sem comentários. Na última afirmação, entretanto, o presidente da Venezuela só cometeu um pequeno erro, no final da mesma, já que realmente seria mais fácil a Coroa Portuguesa reinstalar-se no comando do Brasil, mas não do que ele voltar atrás em sua decisão sobre a RCTV, e sim do que ele se tornar um democrata. De qualquer forma, mesmo sem querer, foi isso que ele disse, só que com outras palavras. Atos falhos acontecem.

Recentemente, durante a reunião de chanceleres do Mercosul, o Brasil não aceitou assinar, no documento final desse encontro, uma moção apresentada por Chavez contra a emissora RCTV no âmbito do Mercosul. No entanto, no governo brasileiro, o Itamaraty, através do assessor do presidente Lula para assuntos internacionais, Marco Aurélio Garcia, por exemplo, justifica a decisão do governo Chavez sob a alegação de que a RCTV teria apoiado o golpe que derrubou o presidente venezuelano, em 2002, além de ter colaborado para desestabilizar as instituições locais da Venezuela.

Mas, em 2002, na época do tal golpe contra Chavez, Lula não manteve a mesma postura de “neutralidade” que hoje adota no caso da RCTV. Embora, na época, ainda não fosse presidente da república, condenou publicamente o golpe contra o presidente da Venezuela. O mesmo Congresso, que hoje pede que o presidente venezuelano reconsidere o fechamento da RCTV, foi o que o apoiou, também em declaração pública, contra o golpe de Estado. Vale lembrar, também que, no início de 2004, o Brasil articulou um grupo de países que ajudou a resolver a crise entre governo e oposição venezuelanas.

A direção nacional do PT, partido político do presidente Lula, e o PSOL de Heloísa Helena assinaram um manifesto de apoio à paralisação das emissões da RCTV. O documento foi entregue, no último domingo, à Embaixada da Venezuela, em Brasília, que divulgou nota dizendo que outras sete organizações também manifestaram apoio a Hugo Chavez, entre elas, o Movimento dos Sem-Terra (MST), o Movimento dos Pastores Negros do Brasil, o Círculo Bolivariano de Brasília e a Central de Movimentos Populares do Brasil.

Não se intrometer nos assuntos internos de outros países tem sido basicamente a justificativa do presidente Lula para não se manifestar nem contra nem a favor da atitude de Chavez em relação à RCTV. Vamos ver se a neutralidade suíça de Lula tem sido uma constante no exercício de seus dois mandatos presidenciais.

Há um ano, mais ou menos, no auge dos conflitos entre libaneses e israelenses, no sul do Líbano, o presidente brasileiro condenou o uso indiscriminado da força por Israel e manifestou seu apoio à proposta de cessar-fogo imediato na região, em mensagem dirigida ao primeiro-ministro da Itália, Romano Prodi, que seria o anfitrião do encontro do Conselho de Segurança das Nações Unidas em Roma.

Em 2004, uma reportagem da revista Veja (14/01 - Olho por olho, dedo por dedo, de Monica Weinberg) falava que guerrilheiros da Colômbia e do Peru estavam encontrando terreno propício no Brasil para realizar negócios e treinamentos. Grupos de elite das Forças Armadas da Colômbia (FARC) estariam aqui para fazer operações de lavagem de dinheiro, de proteção armada ao narcotráfico, de compra de armas, de preparação de operações logísticas e de estabelecimento de linhas de suprimentos. Quando Ricardo Palmera (Simón Trinidad), membro da cúpula da guerrilha das FARC, foi preso em Quito (Equador), por exemplo, comprovou-se que ele estivera diversas vezes no Brasil – numa delas, para participar de uma cúpula secreta das FARC, em Manaus (AM).

Segundo fontes militares citadas na mesma reportagem, guerrilheiros do grupo peruano Sendero Luminoso também estariam realizando operações para obter financiamento para a revolução (proteção ao narcotráfico, contrabando de madeiras nobres brasileiras e de armas para o crime organizado). Estas mesmas fontes disseram, à época, que já teria havido, inclusive, choques entre as forças brasileiras e estes guerrilheiros.

Tanto num caso como no outro, sabe-se que o governo de Lula recusa-se em qualificar grupos como as FARC de terroristas, o que acaba permitindo que elas continuem a operar no Brasil; pois, se fossem considerados como tal, o Brasil seria obrigado a bloquear os bens destas organizações mantidos no país e a autorizar a captura dos seus membros em território nacional. De modo que essa não é uma atitude de neutralidade e sim de partidarismo - no caso, evidentemente, a favor dos revolucionários.

É sempre bom lembrar, também, que o presidente argentino Néstor Kirchner teve apoio explícito de Lula na eleição de 2003. Ainda hoje, ele agradece o respaldo que recebeu do governo brasileiro quando declarou a moratória da dívida externa e enfrentou uma crise com os organismos financeiros internacionais. Em 2004, no Uruguai, Tabaré Vázquez, em campanha vitoriosa à presidência, usou e abusou da imagem do “Lula uruguaio” e teve aval do assessor, Marco Aurélio Garcia. Na Bolívia, desde que entrara na disputa pela presidência, o líder indígena Evo Morales, quando caía nas pesquisas, vinha a Brasília – ele acabou venceu a eleição presidencial em primeiro turno. Ou seja, Lula se mete, sim, em assuntos de outros países – quando isso lhe convém.

Mais outro exemplo. No final de 2003, Lula fez uma polêmica visita a cinco países do Oriente Médio - diversos deles sob governos ditatoriais e até suspeitos de apoiar o terrorismo internacional. A Arábia Saudita, que seria a maior parceira do Brasil na região, não esteve no roteiro. A viagem, para a qual a diplomacia brasileira alegou serem as relações comerciais o objetivo principal, foi considerada pelos auxiliares do presidente como de “uma política arrojada” e de uma “alternativa” à agenda dos Estados Unidos. Na época, não foram nem uma nem duas as notícias divulgadas na imprensa de que a viagem não trouxera nenhum ganho comercial para o Brasil e de que não tivera nenhum reflexo positivo para nossa economia. Ao contrário, foram muitas as críticas sobre as evidências do caráter eminentemente político do empreendimento. Entre estas evidências pode-se citar a declaração do então deputado João Hermann (Partido Popular Socialista - PPS), que fazia parte da comitiva de Lula: “Estamos colocando um pé aqui para desequilibrar a correlação de forças nesta região”.

Lula iniciou a tal viagem pela Síria, que, havia anos, estava na lista dos países que patrocinavam o terrorismo e que era acusada de violar os acordos de não-proliferação de armas químicas e biológicas e de mísseis de longo alcance. Na época, inclusive, a Síria permitira que grupos de guerrilheiros árabes passassem para o Iraque, para atacar tropas americanas. Bem, junto com o presidente sírio Bashar al Assad, Lula divulgou um comunicado no qual ambos pediam o fim da ocupação do Iraque e a devolução à Síria, por parte de Israel, das Colinas do Golã. Não foi só isso. Lula defendeu firmemente a criação de um Estado palestino.

À época, Eliane Cantanhêde, da Folha de S. Paulo, descreveu o fato da seguinte maneira: “Parece, sinceramente, uma provocação desnecessária. (...) Ou, ainda, pura `macheza diplomática´. `Macheza´ que faltou, por exemplo, quando Lula entrou mudo e saiu calado de Cuba, frustrando os que esperavam que condenasse as execuções políticas de Fidel Castro” (5/12/2003). Em respeito à inteligência dos leitores, não cabe, aqui, nenhum comentário sobre os baluartes da neutralidade invocados, hoje em dia, pelo Sr. Luiz Inácio da Silva.

Nessa mesma viagem, já em Beirute (Líbano), Lula criticou a forma como os países ricos protegiam suas economias e afirmou que estava na hora de mudar a geografia comercial do mundo. Para isso, segundo o presidente, a América do Sul deveria começar a olhar para o mundo árabe. Nos Emirados Árabes, Lula defendeu uma política externa agressiva que se contrapusesse aos Estados Unidos, para aumentar a influência de novos blocos regionais no mercado externo. No Egito, durante um almoço para os representantes de 22 países da Liga dos Estados Árabes, Lula, causando surpresa até mesmo aos diplomatas e aos membros da comitiva brasileira, fez novas críticas a Bush e à guerra no Iraque.

Ainda no Egito, o presidente Lula reuniu-se durante quase uma hora com o líder da Autoridade Nacional Palestina (ANP), Nabil Shaath, que lhe entregou uma carta assinada por Yasser Arafat, pedindo ao governo brasileiro que prosseguisse no apoio à causa palestina, principalmente no momento em que o Brasil assumia uma vaga não-permanente no Conselho de Segurança da ONU. Lula não visitou Israel. Não precisaria dizer mais muita coisa. Para quem sabe ler, o pingo do “i” é letra. Mas, mesmo assim, desafiando a capacidade intelectual de quem pudesse ouvir, a diplomacia do governo brasileiro continuou a afirmar que se mantinha “eqüidistante” no conflito Israelo-Palestino.

Seguindo viagem, agora já na Líbia, o presidente brasileiro foi recebido de forma calorosa. Na tenda do presidente líbio, Lula tomou a iniciativa de dar um fraternal e efusivo aperto de mãos em Anuar Kadafi. Justificou: “Hoje, como presidente do Brasil, jamais esqueci os que eram meus amigos quando ainda não era presidente da República”. Durante a recepção, Lula encontrou-se ainda com dois outros líderes de esquerda, Daniel Ortega (líder da revolução sandinista) e Ahmed Ben Bella (líder argelino). Pois é, numa das vezes em que esteve na Líbia, em 1992, quando já presidia o PT, Lula reuniu-se com Kadafi, Ortega, Ben Bella e Yasser Arafat – de quem Lula é conhecido de longa data e com quem manteve encontros, diversas vezes, no passado.

Mas, a neutralidade de Lula sempre vem à tona em situações convenientes. As reações do governo brasileiro quando da prisão de Saddam Hussein, por exemplo, foram, digamos, sintomáticas. Lula não fez comentários e não emitiu nota oficial a respeito – desta vez, apelou para a neutralidade suíça. O Itamaraty, por sua vez, apenas constatou que a prisão representava “um ponto de inflexão na situação iraquiana”, o que, segundo comunicado oficial, contribuiria “para acelerar o processo de transição ao auto-governo (sic) pelo povo iraquiano”. Mas, o assessor Marco Aurélio Garcia disse o seguinte sobre o episódio: “Eu acho que a prisão vai acelerar o processo de paz no Iraque, é o fim do símbolo da resistência. A cabeça foi decapitada”. Três dias após a prisão de Saddam, Bush telefonou para o presidente Lula, que não teria tido como não fazer menção à prisão de Saddam, mas, mantendo conveniente neutralidade, apenas teria dito que a mesma era importante para uma nova fase de transição democrática no Iraque.

Já mais recentemente, em programa radiofônico, veiculado em 12 de fevereiro de 2007, Lula condenou a administração George Bush por se recusar a assinar o Protocolo de Quioto: ''O Brasil tem autoridade moral e política para exigir que os países ricos, em vez de ficarem produzindo protocolos que depois não assinam, cumpram com a sua obrigação de despoluir o planeta. Nós faremos a nossa parte, agora, é preciso que eles façam a deles'', disse Lula. Querendo ou não, o presidente brasileiro intromete-se em assunto interno dos EUA, embora a questão seja de interesse internacional. Apenas devo ressaltar que a liberdade de imprensa também é uma questão de interesse internacional e novamente não precisarei ofender a inteligência dos leitores explicando o que quero dizer com isso.


Bem, quando alguém decide não se meter na discussão entre uma mãe e uma filha, por exemplo, mesmo que em local público, pode-se dizer que esteja sabiamente mantendo-se em posição de neutralidade. Já, quando uma pessoa assiste a um jovem forte e musculoso espancar uma franzina senhora idosa e nem ao menos procura chamar quem possa resolver a situação – a polícia, talvez, se for o caso – ela estará sendo omissa. Mas, se esta mesma pessoa tiver agido com omissão por ser amiga do jovem espancador (e não por simples medo ou indiferença – o que já seria tristemente grave), então ela passaria de omissa à cúmplice. Portanto, nem sempre quem decide não se intrometer numa situação que lhe seja aparentemente alheia está agindo com neutralidade em relação à mesma – às vezes, não fazer nada quer dizer tudo e faz toda a diferença.

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