Christina Fontenelle
17/05/2007
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O gesto de “lavar as mãos” entrou para a História depois de ter sido literalmente praticado pelo Procurador da província romana da Judéia, Pôncio Pilatos, após a condenação de Jesus à morte por crucificação, pelo voto popular direto. O procurador questionou a decisão dos presentes, dando a entender que não concordava com o veredicto, pelo menos aparentemente; mas, não fez valer nem o que julgava justo e nem a sua autoridade. Portanto, “lavar as mãos” não significa não poder fazer nada diante de uma situação ou de uma atitude com a qual não se concorde; mas, sim, não ter vontade de fazer nada para impedi-las, seja por indiferença ou por conveniência – que pode significar medo justificado ou interesse escuso. Neste último caso, o sujeito acaba agindo como Pôncio Pilatos – finge-se de nobre respeitador da opinião alheia, quando lhe é conveniente, e se aproveita do erro dos outros para deixar que se faça algo que lhe sirva, sem ter que carregar o ônus da autoria.
Desde que o tema aborto deixou de ser proibitivo à mídia de grande alcance nas rápidas entrevistas concedidas pelo presidente da república - precisamente após as últimas eleições presidenciais -, Lula vem dizendo repetidamente que é, pessoalmente, contra o aborto, ao responder sobre o tema. Mas, sempre completa sua resposta, dizendo qualquer coisa parecida com o que disse na “entrevista coletivo-engessada”, concedida no último dia 15 de maio, no Palácio do Planalto: “Todo mundo sabe que existe uma quantidade exagerada de mulheres que faz aborto no país... Vão ficar como? Abandonadas? Eu defendo que o Estado dê o tratamento adequado”.
Isso é o que se chama de lógica pseudo-analítica invertida dos padrões da normalidade compreensível sinteticamente aplicada. Entendeu, caro leitor? Não? Ainda bem, porque a seqüência de palavras que eu coloquei não tem o menor significado e nem o menor compromisso com a lógica ou com a coerência. Assim também é a resposta do presidente sobre aborto. Acredito, inclusive, que não tenha sido, digamos, interpelado por nenhum jornalista a respeito de tão nítida incoerência, porque emprego, atualmente, é tratado como um bem raro e valiosíssimo.
Quando diz que defende que o Estado dê o tratamento adequado às mulheres que fazem abortos, o presidente não deixa dúvidas quanto à sua posição favorável a que às mulheres caiba decidir sobre o destino dos filhos que conceberem – pelo menos enquanto eles ainda estiverem em seus ventres – e a que ao Estado caiba fornecer os meios adequados se a opção for pelo aborto.
O presidente diz que, pessoalmente, é contra. O que ele não compreende é que a sua opinião particular sobre o assunto talvez só interesse a ele mesmo. Opiniões pessoais não são leis e nem representam custos aos cofres públicos. O que interessa é a sua posição em relação ao assunto como estadista – como presidente da república. Esse posicionamento, sim, é que acarretará uma série de mudanças estruturais nos atendimentos hospitalares, na distribuição de recursos para a Saúde e que trará uma outra série de conseqüências sociais (sejam elas boas ou ruins, segundo a opinião de uns e de outros).
No seu primeiro mandato, o presidente Lula editou 234 medidas provisórias. De 1º de janeiro a 27 de abril de 2007, o governo já editou mais 24. Abusar de MPs, portanto, é uma constante na gestão petista. Entretanto, no caso específico do aborto, o presidente Lula passa o “abacaxi” para o Congresso – dizendo que a questão deve ser discutida e decidida por aquela Casa. O presidente não está mentindo quando diz que não enviará projeto sobre aborto para o Congresso – não precisa, pois o mesmo já está lá (1).
O projeto de lei, que está tramitando na Câmara sob o nome de substitutivo do PL 1135/91, define o aborto como um direito da mulher ao mesmo tempo em que extingue todos os artigos do Código Penal brasileiro que definem o crime de aborto, acrescentando apenas duas exceções: quando o aborto é praticado contra a vontade da gestante e quando do aborto resultem lesão corporal ou morte da gestante. Ou seja, só haverá crime se a mãe sofrer graves seqüelas ou morrer - matar o bebê, tudo bem.
O artigo 3 deste PL estabelece, ainda, condições bastante amplas para que o aborto seja feito: até três meses de gestação, por simples deliberação da gestante; até cinco meses de gestação, se a gravidez resultou de crime contra a liberdade sexual (o estupro, por exemplo); e até nove meses, se houver "grave risco à saúde da gestante" ou em caso de má-formação fetal. Em outras palavras, para quem conhece bem o país em que vivemos, o anteprojeto libera totalmente o aborto no País.
Ora, tramitam hoje na Câmara mais de 12 mil projetos. Mas, a cada ano, apenas cerca de 140 viram lei. O que faz um projeto ser aprovado é o interesse dos parlamentares e dos partidos, a articulação do Governo e a mobilização da sociedade. Depois de ter passado pelas Comissões Técnicas do Congresso, o projeto, sendo aprovado pela Câmara, segue para o Senado. Para passar a valer como lei, deve ser sancionado pelo Presidente da República – que tem o poder de vetá-lo, total ou parcialmente.
O veto do Presidente, por sua vez, pode ser confirmado ou derrubado pelos parlamentares. Portanto, não resta a menor dúvida de que, se não fosse do interesse do governo, de muitos parlamentares e do presidente da república, o tema do aborto ou passaria bem longe do Congresso ou ficaria por lá, anos e anos, como acontece com temas bem mais importantes, como a reforma de nosso sistema eleitoral, de nosso sistema tributário e tantos outros.
Como estadista, o presidente se coloca favoravelmente ao aborto. E não é de hoje. Em 2004, ele assinou o
PLANO NACIONAL DE POLÍTICAS PARA AS MULHERES - um importante documento, publicado com o apoio do Fundo de Desenvolvimento das Nações Unidas para a Mulher - que estabelecia entre as suas prioridades, "REVISAR A LEGISLAÇÃO PUNITIVA QUE TRATA DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ”, e que também apresentava como proposta, “CONSTITUIR UMA COMISSÃO TRIPARTITE, COM REPRESENTANTES DO PODER EXECUTIVO, PODER LEGISLATIVO E SOCIEDADE CIVIL PARA DISCUTIR, ELABORAR E ENCAMINHAR PROPOSTA DE REVISÃO DA LEGISLAÇÃO PUNITIVA QUE TRATA DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ".
Em 2004, o jornal "O Estado de São Paulo" reportou declaração da Ministra Nilcéia Freire, da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), de que a proposta de legalização do aborto contida no tal Plano não era uma iniciativa isolada daquela secretaria, mas de todo o Governo Lula. Em março de 2005, Nilcéia reiterou essa posição do presidente, assegurando que o próprio Lula havia estava pessoalmente interessado na legalização do aborto no Brasil, tanto que, em abril daquele ano, assim se comprometeu, num documento que foi entregue à ONU - o Segundo Relatório do Brasil sobre o Tratado de Direitos Civis e Políticos ao Comitê de Direitos Humanos da ONU (2).
No XIII Encontro Nacional do Partido dos Trabalhadores, em abril de 2006, foram estabelecidas as “Diretrizes para a Elaboração do Programa de Governo” (
íntegra do documento, no site oficial do PT). O item de número 35 diz que “O segundo Governo deve consolidar e avançar na implementação de políticas afirmativas e de combate aos preconceitos, à discriminação, ao machismo, racismo e homofobia. As políticas de igualdade racial e de gênero e de promoção dos direitos e cidadania de gays, lésbicas, travestis, transexuais e bissexuais receberão mais recursos... O Governo Federal se empenhará na agenda legislativa que contemple as demandas desses segmentos da sociedade, como o Estatuto da Igualdade Racial, a descriminalização do aborto e a criminalização da homofobia”.
O presidente diz que o aborto – e as mortes das mulheres que a ele recorrem em clínicas clandestinas – é uma questão de saúde pública. Inclusive por isso é que o projeto de lei que será encaminhado ao Congresso para votação assegura a realização do procedimento de aborto no âmbito do sistema único de saúde (SUS) e prevê, no artigo 4, que: os planos privados de saúde serão obrigados a cobrir as despesas com aborto – eles poderão excluir até procedimentos obstétricos, mas não poderão excluir os necessários à interrupção voluntária da gravidez realizada nos termos da lei.
Cabe a seguinte pergunta: “O que faz do abortamento uma questão tão grave assim que justifique a obrigatoriedade de aceitação de sua prática até mesmo pelos planos de saúde privados?”. Ora, o aborto não é uma intervenção cirúrgica necessária pela presença de uma doença e sim resultante do exercício do direito de liberdade da mulher de decidir sobre o próprio corpo. Nesse caso, os planos de saúde deveriam também ser obrigados a cobrir as despesas com cirurgias plásticas – consideradas esteticamente necessárias ou não, já que a decisão estaria a cargo da paciente (a dona do corpo). Se não quiser ter filhos, que aborte; se quiser seios maiores, que coloque silicone; se quiser cintura mais fina, que lipoaspire; e assim por diante.
E quanto aos médicos? Fazer ou não fazer o aborto será opcional? Ou serão todos eles obrigados a sugar dos ventres os fetos indesejados pelos corpos cheios de direitos das pessoas que os abrigam? Será que os médicos terão o privilégio de ser pessoalmente contra o aborto, e de não fazê-lo, assim como nosso presidente?
O que o presidente entende por questão de saúde pública? Milhares de brasileiros morrem, Brasil a fora, por falta de atendimento médico adequado. Isso é questão de saúde pública? Milhares de médicos “uivam” aos quatro ventos reclamando das condições de trabalho e dos baixos salários. No Brasil, o número de morte materna por cada 100 mil bebês nascidos vivos é alarmante: 260. Isso é questão de saúde pública?
O país trava, há 25 anos, uma batalha para abolir o mosquito Aedes aegypti, transmissor da dengue, que, erradicada na década de 1950, ressurgiu com toda força em 1982. Mesmo assim, a doença prospera, atinge milhares de pessoas e faz vítimas fatais. Só nos três primeiros meses de 2007, dados parciais indicam que 190 mil brasileiros já tiveram a febre. No ápice da atual infestação, o Brasil viu pacientes com os dolorosos sintomas da doença esperarem até 15 horas para ter atendimento médico. Tudo indica que o ano fechará com um número maior de casos do que o registrado em 2006 - 345.922 doentes e 71 óbitos por dengue hemorrágica. Isto é questão de saúde pública?
Oficialmente, 160 mulheres morreram em 2006, no Brasil, em decorrência de abortos mal feitos. Isto é questão de saúde pública? Dizem que esses números revelam uma injustiça, pois mulheres ricas pagam até 5 mil reais para fazer aborto com segurança. Quantos brasileiros morreram em 2006 por não terem dinheiro para pagar por atendimento médico adequado para tratar de milhares de doenças? Isto é questão de saúde pública?
Afinal, o que é questão de saúde pública para o governo Lula? Pode-se separar o estadista do homem? A resposta deve passar, com certeza, pelo conceito de conveniência...
(1) No dia 27 de setembro de 2005, após reunir-se com o Presidente Lula para, conforme o jornal O Estado de São Paulo, obter o seu aval, a Ministra Nilcéia Freire entregou a proposta do governo para a total descriminalização do aborto no Brasil, ao Deputado Benedito Dias, presidente da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados.
(2) “O atual governo brasileiro assumiu o compromisso de revisar a legislação repressiva do aborto para que se respeite plenamente o princípio da livre eleição no exercício da sexualidade de cada um... O Governo do Brasil confia que o Congresso Nacional leve em consideração um dos projetos de lei que foram encaminhados até ele para que seja corrigido o modo repressivo com que se trata atualmente o problema do aborto" (página 12).