Christina Fontenelle
25/07/2006
25/07/2006
Na última sexta-feira, 21 de julho, eu estava assistindo a um dos noticiários que passam na TV, na hora do almoço, e uma reportagem chamou a minha atenção. Um motorista do Rio de Janeiro havia sido detido pela polícia, após ter enganado algumas vezes os famigerados radares eletrônicos espalhados pela Linha Vermelha. Todas as vezes que cruzava com um destes radares, o motorista acionava um dispositivo que fazia a placa verdadeira do carro levantar (como um daqueles portões eletrônicos de garagem) e mostrava uma outra placa, onde estava escrito o seguinte: “Fui!” Assim, ele passava pelos radares sem ter que frear como fazem todos os outros motoristas e evitava as pesadas multas sobre quem ultrapassa os limites de velocidade.
O fato em si é engraçado pela criatividade, pela ousadia e pela engenhosidade do dono do carro. Na hora em que ouvi a notícia, eu ri. Mas, pensando um pouco melhor sobre o ocorrido, eu pude verificar que se tratava de um dos mais emblemáticos atos de desobediência civil que tenho visto ultimamente - coisa que vem me chamando muito a atenção, na medida em que venho notando um crescimento acelerado deste tipo de atitude extrema, levada a cabo por indivíduos que não suportam mais a vigilância física e psicológica, cada vez mais acirrada, por parte da sociedade e dos órgãos de repressão do Estado, muitas vezes com imposições que fogem à lógica da natureza humana e não permitido que nenhuma voz de oposição a elas seja ouvida.
Resolvi pesquisar o que de fato havia acontecido. Adeilson Felix de Brito (30 anos) era o nome do motorista do carro – uma Parati cinza, placa LCA-1455. Ele foi o primeiro infrator a ser flagrado pelo novo esquema de blitz integrado que passou a fiscalizar, desde 20 de julho, a movimentação nas principais rodovias e vias expressas do Rio, através de 90 pardais (que é como os cariocas chamam os radares fixos) e de 120 lombadas eletrônicas – transformando-os, além de detectores de excesso de velocidade, também em detectores de veículos roubados, clonados e com multas e IPVA vencidos.
A partir de agora, os bancos de dados do Detran-RJ, do DER, do Detro e da Polícia Civil estão integrados. A informação captada por radares e lombadas chega até o centro de monitoramento do DER, onde a situação do veículo é checada em segundos. Depois, é repassada via rádio para a blitz mais próxima da mesma via. Vale ressaltar que as 41 lombadas e os 31 radares instalados pela Prefeitura do Rio não fazem parte do esquema.
Na verdade, então, o motorista não foi pego pelo dispositivo instalado na placa, como havia dado a entender a rápida reportagem televisiva, e muito menos por estar trafegando acima da velocidade permitida (90 km/h - muito baixo, diga-se de passagem, para uma via expressa como a Linha Vermelha). Diferentemente do que está descrito no parágrafo anterior, ao que parece, as câmeras filmaram a placa verdadeira (portanto, fora das zonas de radar, onde o dispositivo era acionado e a placa levantava) e, com a rapidez do sistema de informações, detectou que o veículo estava com o IPVA atrasado e o sistema de placa adulterado.
A Parati foi parada pelos policiais que, então, ao revistarem o carro, descobriram o dispositivo que levantava a placa. Adeilson - o motorista - disse que não sabia da artimanha, já que o veículo está em nome de seu cunhado, Renato Gonçalves Montes. O carro foi apreendido por policiais e ficou no posto do DER, perto de Duque de Caxias, na Linha Vermelha, à espera de perícia da Corregedoria do Detran. A punição irá para o proprietário, que vai receber multas por ter dispositivo anti-radar e por estar circulando sem o IPVA em dia - R$ 191,54 cada uma. Ele ainda vai receber 14 pontos negativos na carteira. Adeilson foi liberado, mas os documentos do carro ficaram retidos. A fraude infringe o artigo 230, inciso 3, do Código Nacional de Trânsito e o acusado poderá responder a inquérito por crime de adulteração de característica de propriedade (3 a 6 meses de prisão mais multas).
Enfim, se antes já havia muita polêmica em relação à eficiência dos radares para evitar acidentes no trânsito – que é o objetivo oficialmente declarado pelos Estados para a instalação dos mesmos – agora vai haver muito mais. Radar, agora, também servirá para perseguir endividados. Em futuro próximo, poderemos inclusive estar sendo monitorados em função de nossas preferências políticas, para que sejamos cada vez mais extorquidos financeiramente, até que chegue o momento em que não tenhamos mais tempo nem condições de reagir ao sistema.
Sobre evitar, ou diminuir o número de acidentes, há inclusive uma tese de mestrado apresentada na USP (Universidade de São Paulo) por um engenheiro, que, baseado numa pesquisa realizada na rodovia Washington Luís (SP), indica que o número de acidentes e de vítimas é maior nas proximidades dos radares de controle de velocidade do que em locais não monitorados por eles. Há os que dizem que, se as empresas que instalam os radares recebem uma percentagem sobre as multas, somente isso já seria suficiente para levantar suspeitas quanto aos objetivos da instalação dos mesmos. E ainda há os que defendam a idéia de que os tais radares provoquem mais estresse nos motoristas do que evitem acidentes.
É o caso da Avenida das Américas, no Rio de Janeiro - uma larga avenida que atravessa dois bairros inteiros (Barra e Recreio) e possui, em quase toda a sua extensão, três vias paralelas – a do meio com 4 pistas e as duas laterais com 3 cada uma. Só não é uma via expressa por causa dos sinais de trânsito e dos cruzamentos, que, aliás, são bem espaçados uns dos outros. Pois bem, os limites de velocidade estabelecidos são de 80 Km/h, para a pista do meio, e de 60 Km/h, para as laterais – totalmente fora da realidade. É impossível respeitá-los, a não ser em frente aos radares, local onde todos freiam e onde já houve acidentes, justamente por causa disso. Na verdade, os limites deveriam ser de 100 km/h, no meio, e de 80 km/h, nas laterais. Então, fica parecendo que o objetivo dos radares nesta avenida são os de irritar os motoristas e de angariar fundos para o Detran e não o de educar ou de punir os que circulem pelo local, fora dos limites do bom senso.
A própria Linha Vermelha, onde a Parati foi apreendida, já foi citada como exemplo de via onde o sistema de aplicação de multas visa mais a arrecadação do que a segurança dos motoristas ou a sua educação. As câmeras ficam escondidas e a sinalização de alerta da fiscalização eletrônica - exigida pelo código de trânsito - não é colocada de maneira correta (há câmeras onde não tem sinalização e esta onde não há câmeras). Os limites de velocidade permitidos são inferiores a velocidade média típica da via, aumentando a incidência das multas e, conseqüentemente, a arrecadação. Entretanto, isso é mais um dos fatores de aumento do risco de acidentes, uma vez que faz com que os motoristas desviem com freqüência os olhos da estrada, para conferir o velocímetro, ainda que todos saibam que exista uma tolerância – mas que também é ínfima e, por isso, insuficiente. A bem da verdade, há os que defendem que essa tolerância devesse ser de 30% sobre o limite sinalizado para a aplicação das multas. Isto permitiria que o trânsito fluísse com muito mais segurança, já que os motoristas ficariam mais concentrados no trânsito do que no velocímetro.
A Linha Vermelha (LV) é recordista de multas no RJ. Em seguida vêm a Av. das Américas, a Av. Brasil e a Av. Ayrton Sena. A diferença entre o volume de multas da Linha Vermelha e da Av. das Américas é de 167%. Segundo dados do Departamento de Estadas de Rodagem do RJ (DER/RJ), isso se explica pelas características da LV e por uma diferença básica: nas vias fiscalizadas pela prefeitura, uma sinalização branca nas pistas indica os radares, na LV não.
Há ainda o problema de os radares serem operados por empresas particulares, que são generosamente remuneradas com valores que giram em torno de 20% da arrecadação com as multas, quando deveriam ser bem menores. Mas, não são só as empresas que dão problemas, os Estados arrecadadores dão mais trabalho. Isto porque tais recursos, vindos do bolso dos pretensos maus motoristas, entram nos cofres dos municípios sob o título contábil de “receitas extra-orçamentárias” e, por causa disso, não ficam passíveis de fiscalização direta pelos conselhos ou “tribunais” de contas. O dinheiro deveria ser utilizado para desenvolver atividades de educação no trânsito e em sinalizadores. “Tribunais” ou conselhos de contas espalhados pelo Brasil investigam se o dinheiro das multas está servindo a esquemas paralelos de lavagem de dinheiro, em operações que envolvem fornecedores de prefeituras que, por coincidência, se transformam em financiadores legais e ocultos de campanhas eleitorais.
As propostas em estudo pela Comissão de Viação e Transportes da Câmara dos Deputados para a reforma do Código de Trânsito Brasileiro atacam problemas importantes observados desde a sua promulgação em 1998. As mais importantes destinam-se a criar mecanismos para forçar as prefeituras a aplicar corretamente os recursos obtidos com a sua aplicação, obedecendo ao artigo 320 do Código, segundo o qual 95% dos recursos obtidos com as multas têm de ser gastos em "sinalização, engenharia de tráfego, de campo, de policiamento, fiscalização e educação de trânsito". Os prefeitos resistem a essa regra, porque sabem que, se os recursos das multas obedecerem à finalidade educativa, elas tenderão naturalmente a diminuir a médio e a longo prazos, atingido assim o objetivo do Código, mas diminuindo a “receita” extra das prefeituras. Isto é Brasil.
A verdade é que ninguém mais agüenta ser extorquido por todos os lados e de todas as maneiras sem que se tenha o menor retorno, nem prático nem psicológico, dos “investimentos” forçados. O cidadão não tem voz como indivíduo, ele só é visto como cidadão-coletivo, coisa que vai diretamente de encontro à mais elementar das característica humanas: a individualidade. É claro que não se poderia ouvir todos os cidadãos individualmente sobre todos os assuntos. Entretanto essa parece ser uma boa desculpa para justificar a imposição de leis e regras que se sabe muito bem servir a minorias, em detrimento das liberdades e dos direitos da maioria, como se fizessem parte do senso comum da última. Se não se pode ouvir a maioria individualmente, que se ouçam os que se manifestam – que, apesar de serem minoria dentro da maioria, são também em maior número do que a minoria para qual muitas das leis e regras são estabelecidas.
No Brasil, as leis parecem surgir do nada, repentinamente, e quase sempre para extorquir o cidadão. De repente, por exemplo, você não pode mais fumar em nenhum lugar público, mas os programas de ajuda a quem está sendo obrigado a deixar de fumar são ministrados em pouquíssimos lugares, às vezes a duas horas do local da residência ou do trabalho do “maldito” fumante. Os remédios e o tratamento são caríssimos. Ou seja, a Lei agora é essa e dane-se. Ficou decidido que fumar polui o ar, mesmo em ambientes abertos, e que se danem os viciados e os que pensem em contrário, mesmo que estejam baseados em estudos estatísticos e científicos que digam exatamente o contrário do que os que foram utilizados para embasar a nova lei.
Ficou decidido também, que todos os consumidores das grandes cidades do país estão obrigados a pagar uma taxa extra pelo direito de consumir. São os famigerados estacionamentos pagos em shoppings, desde os minúsculos aos mega deles. O sujeito, se quiser consumir num shopping, tem que pagar para estacionar, mesmo que, se não houvesse onde parar, o mesmo sujeito talvez jamais aparecesse por lá. Quem vem primeiro? O ovo ou a galinha? Nesse caso, com certeza os shoppings vieram primeiro; os estacionamentos pagos, depois. Aliás, quando começaram a se espalhar pelo país, um dos apelos dos shoppings, para tirar os clientes do comércio de rua, era justamente em relação às facilidades de estacionamento. Alguns destes, mesmo depois de terem passado a cobrar, ainda exibem uma placa dizendo que não se responsabilizam por roubos de objetos deixados dentro dos veículos e alguns até mesmo pelos danos que o veículo possa sofrer durante a permanência no estacionamento.
Querem mais? Lá vai. O Governo do Presidente Lula decidiu que a segunda língua que todos os brasileirinhos das escolas públicas do país serão obrigados a aprender é o espanhol. Por decreto, o Governo brasileiro resolveu que o espanhol é mais importante do que o inglês, quando todo mundo sabe que, sem saber inglês hoje em dia, uma pessoa fica extremamente limitada, principalmente no que se refere à sua capacidade de obter uma diversidade maior de informações.
Outro exemplo. A gente paga CPMF para que o dinheiro se destine à melhoria do sistema de saúde e, ao contrário, cada vez mais temos que recorrer aos planos de saúde para não vir a ter que morrer nos corredores dos hospitais públicos caso precisemos de atendimento hospitalar.
Cansado de esperar anos a fio para que o país tome os rumos do desenvolvimento e do respeito ao cidadão – além das fronteiras do politicamente correto e dos direitos humanos dos criminosos - , o indivíduo começa a tomar consciência de que a desobediência civil é a última arma que lhe restou para defender seus direitos e para que seus pontos de vista sejam levados em consideração. É a natureza humana falando mais alto dentro das pessoas. São essas reações que acabam não podendo ser previstas pelos instituidores da nova ordem mundial. Mas, percebendo o fenômeno, seus agentes agem no sentido de incrementar cada vez mais os sistemas de vigilância e de punição.
A jogada é a seguinte: cria-se uma determinada situação incômoda (os assaltos, por exemplo); depois, começam os estudos e as estatísticas – muitas delas falsas – a respeito do tema; em seguida, começam as medidas para “controlar” o problema – jamais para resolvê-lo de vez, já que isso implicaria, a longo prazo, na não mais necessidade de tais medidas (que são para o controle das pessoas comuns e não apenas dos criminosos, na verdade); até que finalmente se chegue ao ponto no qual as pessoas passarão uma “procuração” aos “solucionadores do problema” para que eles possam vigiá-las, em nome da sua própria segurança (ou da solução do problema). É a nova ordem mundial.
Chegará ao ponto em que pagaremos imposto ao Estado por permitir que vivamos sob sua vigilância e cuidados. Pagaremos pelo direito de viver – e muito mal, diga-se de passagem.
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